Do “Homem da Malária” à Modernidade: Memórias e Reflexões sobre a Saúde no Interior

 

Do “Homem da Malária” à Modernidade: Memórias e Reflexões sobre a Saúde no Interior

Eu era criança na década de 1960 e adolescente até meados da década de 1970. Sobrevivi ao período dos "homens da malária", aqueles agentes de saúde que percorriam as poucas residências na zona rural onde eu morava. Esses homens, contratados pelo governo federal, tinham como objetivo amenizar os impactos na saúde que alarmavam a comunidade. Eles chegavam montados a cavalo ou a pé, corajosos e dedicados, pois o trabalho era árduo. Realizavam tarefas que hoje são desempenhadas por agentes de endemias e laboratórios de patologia; como exemplo, a coleta de sangue e fezes que eram levadas para análise no laboratório do Fundação SESP, o único da região, cujos resultados demoravam mais de um mês para serem entregues. Quando finalmente retornavam com os exames, suas sacolas amarelas estavam repletas de medicamentos que curavam ou amenizavam doenças graves, como esquistossomose, lombriga e doença de Chagas, entre outras.

Como resultado, os“homens da malária” eram considerados o terror das crianças e das donas de casa. Minha mãe era uma dessas donas de casa que detestava a visita deles à nossa humilde residência. Quando eles chegavam, era preciso desmontar todo o mobiliário e colocá-lo para fora, pois a necessidade de dedetizar o ambiente para prevenir contra o besouro da doença de Chagas se tornava obrigatório, às vezes minha mãe alegava que estava doente para não deixar os homens fazerem seu trabalho; quase 100% das residências eram de taipa. Após a dedetização, éramos obrigados a esperar cerca de dez horas para montar os móveis, que não eram muitos: uma mesa, quatro cadeiras, uma cristaleira e as camas com colchões de palha de arroz. Naturalmente o veneno utilizado na dedetização trazia benefícios, mas provocava reações indesejáveis e desconhecidas. Por essa razão, minha mãe detestava, enquanto eu e meus irmãos procurávamos nos esconder para não termos que furar o dedo.

Era uma época difícil, sem médicos e sem água tratada. A água da cacimba era compartilhada com larvas de mosquito, sapos e outros insetos que ao caírem dentro não conseguiam sair. De acordo com as necessidades, os moradores buscavam resolver, utilizando técnicas de tratamento de misturas de substâncias, como a filtração e a densidade, utilizando a pedra hume que ajudava na separação. Como sempre, as crianças eram as mais prejudicadas. Lembro-me das vacinas; uma delas era aplicada com uma pistola, onde uma única agulha servia a todos. Seguramente, a escola passou a fazer parte da prevenção, a disciplina de ciências dava uma luz sobre os perigos que nos rodeavam e os males que causavam danos à saúde. Foi na década de 1970 que começou a surgir o uso obrigatório do vaso sanitário distribuído pelo Fundação SESP, uma mudança de hábito que podia evitar o contato de pessoas saudáveis com fezes de pessoas contaminadas por esquistossomose, uma doença derivada do caramujo que provocava a famosa barriga d’água, uma doença incurável.

Naturalmente que, apesar dos benefícios que os “homens da malária” traziam, eu ainda os via como monstros que maltratavam as crianças por conta da dolorosa furada no dedo. Na ausência dos médicos, minha mãe era uma assistente de saúde competente, muitas vezes tirava seus filhos de grandes dificuldades, utilizando a profilaxia ensinada por seus descendentes. A dor de barriga era curada com elixir paregórico, e o óleo doce era utilizado para limpar o intestino e evitar lombrigas, que muitas vezes apareciam em tamanhos gigantes. Até o fumo de corda vendido na feira ajudava em algum problema de saúde. Certa vez, quando estava na escola, tive uma dor muito forte na barriga, e minha mãe utilizou o fumo de corda para ajudar a amenizar a dor. Ela abafava a fumaça com um cobertor em minha barriga e complementava massageando com a saliva após mascar a folha do tabaco. Essa dor me rendeu um dia envergado. O segredo no tratamento utilizado por minha mãe até hoje desconheço.

Diante das dificuldades e do medo, as noites se tornavam agradáveis. A casa de meus avós, que ficava perto, era um refúgio nas noites de lua cheia. O terreiro de areia e uma esteira de junco serviam como palco para ouvir as histórias de minha avó e bisavó. Minha bisavó era uma senhora baixa, de cor preta, cabelo preto e mantido a base do óleo de coco, os olhos pretos e cansados, suas pernas já não a mantinham por muito tempo em pé, parecia ter passado pela senzala, pois sua idade avançada proporciona a todos muito do conhecimento comum. Morava na cidade, mas fazia a festa dos bisnetos quando passava uns dias com sua filha, minha avó materna. Ela tinha uma experiência impressionante e sabia de tudo um pouco. Contando suas histórias, inflamava seu cachimbo de fumo de rolo, picado por ela, à medida que dava uma tragadas me deixavam curioso, pois o cheiro da fumaça era muito bom, o que fazia com que ela dividisse comigo, mas sempre me alertava: "Você vai ficar bêbado." Sua sabedoria era confirmada quando eu começava a sentir náuseas e a perder o equilíbrio, mas, de repente, passava. A sabedoria dela me curava com a minha própria saliva atrás das orelhas. Incrível como a cura era rápida.

Assim era a vida no interior, dependente de curandeiros e rezadeiras. Osso quebrado, dor de barriga, dor de cabeça, bicho de pé, barriga inchada eram doenças comuns para um grupo de pessoas que não tinham os mesmos direitos daqueles que moravam nos grandes centros. Crianças como eu acordava com os apelos de papai para ajudar a pescar camarão e peixe para ajudar na alimentação, realizado duas vezes por dia: uma na parte da tarde para colocar a isca e outra na manhã seguinte para despescar as armadilhas chamadas de covo. Não havia chuva nem sol que impedisse essa prática, pois as necessidades financeiras ajudavam a aproveitar as abundâncias que o inverno proporcionava.

Todavia, as crianças e adolescentes tem uma visão de mundo diferente de seus pais, e a minha não era diferente. Sempre atraído pelos serviços da roça e pelos cuidados com os irmãos mais novos, eu era obrigado a acordar cedo para ajudar meu pai ou ir para a escola. Isso me tirava um pouco da obediência, mas meu "psicólogo" eram os gritos de minha mãe, às vezes acompanhados de um cinturão de couro, e meu "Rivotril" era o jogo de bola nas várzeas perto da casa de um tio. Visitar a cidade, só nas sextas-feiras era possível; esse dia tinha exclusividade; dia de pagamento para aqueles que trabalhavam de aluguel e faziam as compras dos alimentos essenciais para a sobrevivência, nada de coisas supérfluas.

Na década de 2020, os “homens da malária” já não existem mais. A Fundação SESP foi municipalizada, e o governo federal passou a ser apenas um mero repassador de recursos para os municípios cuidarem da saúde pública. Os tempos mudaram, e as profilaxias do passado realizadas com medicamentos caseiros deram lugar aos medicamentos industrializados com efeitos mais rápidos. A era tecnológica passou a ter um papel fundamental no aumento da perspectiva de vida das pessoas. O feminismo tomou conta dos quatro cantos do mundo, e a defesa do aborto é um tema amplamente debatido pelos progressistas. Novas doenças surgiram, e as pessoas foram obrigadas a ficar presas em suas casas. A profilaxia realizada por profissionais da saúde foi proibida por homens que talvez nunca se deram ao luxo de ouvir especialistas no assunto.

Catástrofes vêm acontecendo com mais frequência. Existe um grupo que fala em catástrofe ambiental, mas há os que dizem que é catástrofe humana, pois os homens que gerem os municípios, os estados e o país não estão dando a mínima atenção para o caos em que as cidades se tornaram por conta do progresso. Guerras entre irmãos surgem a cada dia no mundo, enquanto as dificuldades de sentar à mesa para encontrar uma solução ficam cada vez mais difíceis. Pais já não cuidam mais de seus filhos e jogam para a escola a responsabilidade da ética educacional.

Raquel de Queiroz, em sua crônica “Gente Demais”, diz: “quem sabe os males do mundo não decorrem do fato de, neste mesmo mundo, estar havendo gente demais(...) E como tem conosco o compromisso de nos permitir o livre-arbítrio, deixa que a poda a façamos nós mesmos”. Será que a autora faz um prenúncio do que pode ocorrer no futuro?

 


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